sábado, 8 de março de 2014

The Square

Num dos momentos do documentário "The Square" (A Praça), um motorista militarizado diz que as manifestações anti-presidente Hosni Mubarak que tomaram a praça Tahrir eram formadas por pessoas que não tinham o que fazer, por ladrões e bandidos com tal convicção que ainda olha pro documentarista e diz "ah, você sabe disso porque esteve lá, né?". O documentarista não responde. A edição mostra momentos antes a praça tomada por ativistas, manifestantes, músicos, crianças e mulheres em barracas num sistema de comunidade invejável - numa barraca há pessoas fazendo comida, em outra área há uma grande fogueira e pessoas cantando, numa outra barraca homens conversam sobre o presidente ainda não ter entendido que para terem menos corrupção, mais educação e saúde, ele teria que sair do poder, e todos se ajudavam seja por água, comida, abraços ou cigarro. Dentre os manifestantes há o ator de origem egípcia Khalid Abdalla, o protagonista de "O Caçador de Pipas".


a ator Khalid Abdalla em Cairo
 "The Square", da documentarista egípcia Jehane Noujain, acompanha na maior parte do tempo Ahmed Hassan, um jovem revolucionário em seu cotidiano de manifestações por ruas repletas de discordâncias, líderes sem ideais políticos e muita arte de rua. E é pelos olhos e visão política dele que o filme avança. Mas ele não é o único no grupo de revolucionários que querem derrubar líderes corruptos e regimes suspeitos, arriscando suas vidas pra construir uma nova sociedade de consciência. Além dele e do ator, também acompanhamos de perto o muçulmano Magdy Ashour, inclusive sua família.

Ahmed Assan - revolucionário
Após 18 dias de manifestações na praça, em fevereiro de 2011 o presidente renuncia ao cargo, mas meses depois foi preciso outra intervenção pra derrubar o governo provisório militar que não atendeu a demanda pública de criar uma nova constituição. Mesmo sem um candidato que atendesse ao desejo dos revolucionários, as apressadas eleições dividem o povo entre liberais que não querem nem o candidato militar nem ligado a partido religioso, e muçulmanos, que apoiariam o candidato Mohamed Morsi da Irmandade Muçulmana (através do Partido da Liberdade e da Justiça) . Militares ou muçulmanos fundamentalistas? Qual governo seria pior? As manifestações foram um fracasso?

a praça num dia normal
O filme foi acusado de parcialidade ao mostrar os revolucionários como heróis, e não mostrar todos os lados da revolução. Há quem diga que a maior parte do povo foi a favor que os militares limpassem a Praça Tahrir das manifestações (inclusive a transformando num lindo - e abominável - jardim), e que os atropelamentos de manifestantes por tanques que culminaram na morte horrenda de mais de 20 deles, foi apenas consequência de uma revolução desorganizada. Eu discordo, porque mesmo mostrando tudo sob o ponto de vista de poucos manifestantes, os depoimentos de todos deixam claro muita coisa.

a praça tomada por manifestantes
Num paralelo com o Brasil, o que "The Square" mostra é que os interesses políticos contaminam a fé das pessoas de forma tóxica, e o fundamentalismo religioso pode acabar com um país. No começo as manifestações não tinham nada de religioso. Eram apenas jovens querendo mais saúde, educação e um governo que governasse apenas para o povo por uma nova constituição. Na ascensão das manifestações na praça, a Irmandade Muçulmana, uma organização que tenta ocupar todos os espaços das sociedades islâmicas a fim de impor seu lema "Deus é o único objetivo. Maomé o único líder. O Corão a única Lei. A jihad é o único caminho. Morrer pela jihad de Deus é a nossa única esperança" mandou seus fiéis pra praça. Por trás disso estava o interesse da organização em fazer com que esta nova constituição fosse feita segundo seus interesses. Num certo ponto, vemos que com a posse do governo provisório militar, que supostamente havia feito um acordo com a Irmandade, os muçulmanos abandonam a luta. Quando as manifestações contra o então presidente eleito (e aparentemente fantoche da Irmandade Muçulmana) Mohamed Morsi crescem, o personagem ligado à Irmandade Magdy Ashour é chamado pras manifestações pró-Mursio, mas sabe que algo não está certo, e diz "quando a Irmandade chama você pra luta, você deve ir", e sua mãe religiosa quase o descreve como um traidor vagabundo por estar em dúvida do que seria o certo, e é sua filha quem resume tudo ao dizer "mesmo com Mursi no poder, continuo sem plano de saúde".

a diretora Jehane Noujain
Bancado pelo Netflix, o filme teve uma modesta distribuição em salas de cinema, que garantiram a indicação do filme ao Oscar de melhor documentário, o primeiro do sistema de streaming. Da sua primeira exibição em janeiro de 2013 até seu lançamento em janeiro de 2014, o filme ganhou nova edição pra mostrar novos desenvolvimentos políticos. Mas o pior certamente foi o golpe militar de julho de 2013, que derrubou Mursi (e a Irmandade Muçulmana) após desorganizadas e violentas manifestações, suspendeu a reforma constitucional e impediu qualquer tipo de manifestação e qualquer ação da Irmandade Muçulmana (aquela que ajudou em 2011 por interesses próprios).

Curiosamente, Praça Tahrir significa Praça da Liberdade, mas o documentário nem precisa falar isso.


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