A narrativa nos jogos sempre foi importante, mas nunca teve tanto peso como hoje. Ainda há muitos jogos com um plot que permite jogá-lo sem muitas surpresas por todo o seu tempo, mas a maioria hoje valoriza a individualidade dos personagens, ao ponto de obrigar o jogador a cometer atos que jamais cometeria na vida real, e perceber em certo ponto que está jogando com um vilão, ou simplesmente compreender sentimentalmente os objetivos do personagem.
Último jogo da franquia de video game militar "Spec Ops" criada inicialmente pela Zombie Studios, que teve 10 jogos lançados desde 1998, "Spec Ops: The Line", já nas mãos da Yager Development e distribuída pela grande 2K Games, é um desses jogos onde a narrativa faz toda a diferença. Acompanhamos e controlamos o Capitão Martin Walker, que é enviado pra fazer reconhecimento e busca de área em uma Dubai devastada por tempestades de areia, após uma mensagem de rádio que dizia "aqui é o Coronel John Konrad, do exército dos Estados Unidos. A tentativa de evacuação de Dubai acabou em completo fracasso. Número de mortos: muitos" com mais dois membros da equipe Força Delta. Ao encontrar corpos de soldados americanos, ele decide que eles devem então procurar por sobreviventes. Conforme eles avançam, surgem evidências de que o 33º esquadrão de soldados se dividiu entre leais e exilados que cometeram atrocidades contra civis a fim de manter a ordem (alguém aí pensou em milícia?). Walker tende a acreditar que John Konrad, o coronel por trás da mensagem de rádio, seja um dos leais, já que teve a vida salva por ele no Afeganistão tempos atrás. Mas a trama tem uma virada brusca quando membros da CIA aparecem pra, teoricamente, eliminar todo do 33º esquadrão, e os três agentes da Força Delta acabam ficando no fogo cruzado, e o tempo todo confundidos com inimigos. Ou eles seriam mesmo os inimigos, e não sabem?
tempestades de areia acontecem de tempo em tempo |
Uma trama com tantas camadas poderia resultar em algo simples ou clichê como na franquia "Call of Duty", mas em "Spec Ops: The Line" pouco importa quem seja bom ou mau, apesar desse dilema manter a atenção do jogador. É a jornada moral do Capitão Martin Walker, sem saber em quem atirar, que importa. A maioria dos tiros ocorre por simples auto-defesa, ou pra salvar alguém, que pode vir a ser o verdadeiro inimigo. Um dos momentos mais brilhantes desta narrativa é quando o jogo faz o jogador se sentir um vilão, numa situação muito mais dramática e indispensável que a polêmica fase do aeroporto de "Modern Warfare 2". A partir deste ponto, o jogo se torna uma investigação psicológica sobre os traumas de uma guerra que antes não era sua, mas agora se tornou pessoal.
"Por que estão atirando em mim?" |
A jogabilidade em terceira pessoa funciona perfeitamente nesta narrativa, mas muitos podem reclamar da falta do que fazer em grande parte do jogo. Apesar de começar numa tensa perseguição em helicópteros que acontece no meio do jogo, e depois voltar pra como tudo começou, a missão de reconhecimento de área é levada ao pé da letra, e não se dá um único tiro por muito tempo, mas se vê muitas coisas que ajudarão a contar esta complexa trama. E quando é preciso atirar, o jogo fornece todas as ferramentas necessárias pra tornar a experiência agradável e muitas vezes também difícil (morri diversas vezes em telas onde também precisava de uma estratégia).
O fato de "Spec Ops: The Line" ser tão pouco conhecido desde seu lançamento em junho de 2012, e estar ganhando status de cult, talvez resida no próprio título. A Activision, por exemplo, tentou em algumas divulgações dissociar a franquia "Modern Warfare" da série "Call of Duty", da qual ela pertence, apesar de ambos serem um sucesso desde o princípio. Ninguém mais lembra de "Spec Ops", que teve o último título pra PlayStation2 massacrado pela crítica. "The Line" é algo completamente independente, inclusive em engine, gráficos e principalmente narrativa.
"O horror. O horror" |
Pra coroar um jogo subestimado, que merece sua atenção, vale lembrar que a trama de "The Line" se baseia em poderosos conceitos sobre comportamento humano em situações hostis, fascínio por alguém que não está lá, bem e mal do romance "O Coração das Trevas", escrito por Joseph Conrad (alguém lembrou do Coronel John Konrad do jogo?) em 1899, que também influenciou obras famosas por explorar o psicológico humano em momentos extremos como o seriado "Lost".