No começo da música "Gloria", Patti Smith incorpora seu poema "Oath" que começa com "Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não os meus". Ao contrário de parecer totalmente herético, a passagem é uma declaração de existência, como um voto de responsabilidade pelos próprios atos. Segundo Patti, Cristo era alguém contra quem valia a pena se rebelar, pois ele era a rebelião em pessoa. E tudo isso tem a ver com a mais pura fé.
O livro "Só Garotos" é a deliciosa autobiografia de Patti Smith
lançada em 2010, e é resultado de uma promessa. De fé. Criada por uma simples família de valores tradicionais de Chicago nos anos 50, Patti acabou crescendo com os irmãos numa pobre Nova Jersey. Foi lá que ela destruiu o próprio futuro ao ficar grávida aos 19 anos, e descobriu que os tais valores tradicionais já não eram mais tão tradicionais ao continuar acolhida pelos pais. Tradições estas que já a amedrontavam desde criança, quando questionou a mãe sobre ter de colocar uma camiseta pra brincar com garotos, a existência de Deus e os motivos pra rezar. Ela compreendeu a parte espiritual muito cedo, quando muito cedo teve contato com o sentimento de morte, mas nunca deixou as outras questões atrapalhar seus planos. Foi assim que ela decidiu sair de casa, e encarar Manhattan. Antes, a mãe, sem saber bem como apoiar a filha, lhe embrulhou um uniforme de garçonete e disse "você não daria uma boa garçonete, mas aposto em você mesmo assim". A mãe tinha razão quanto a ser garçonete e em apostar na filha.
Mas "Só Garotos" não fala exclusivamente de Patti. Se trata da promessa que ela fez a Robert Mapplethorpe, seu companheiro por muitos anos. Ele, um típico filho de fervorosos católicos que se desgarrou do rebanho, salvou Patti de apuros em ao menos dois momentos antes deles decidirem morarem juntos pra nunca mais perderem o vínculo. Não eram amigos, nem namorados, nem noivos, nem casados, nem irmãos, mas tudo isso junto. A história de amor deles é geralmente vinculada em artigos sobre relações não-monogâmicas, mesmo que eles nunca tivessem rotulado de qualquer forma.
um dos famosos retratos de Robert |
Juntos eles passaram muitos perrengues pra ter sua arte (desenhos, recortes, poesias, colagens, textos em geral) reconhecida de alguma forma. Cada um a seu modo mergulhou num mundo próprio, mesmo que de mãos dadas, com alguns muitos percalços, e descobriu suas reais vocações. Mas pra isso precisaram fazer muito contatos e focar em seus sonhos - como o de Robert em ser uma espécie de Andy Warhol e se cercar de seus amigos. Nesta jornada passaram por uma América em transformação (política, científica e intelectual) e encontraram figuras como os músicos Jimi Hendrix, Janis Joplin e o dramaturgo Sam Shepard, além de muitos figurões excêntricos que muito os ajudaram.
a famosa capa do disco de estréia de Patti |
Patti se tornou uma roqueira famosa, praticamente sendo a precursora do punk-rock sem se dar conta disso, misturando sua poesia com notas musicais e parcerias corajosas. O caminho que ela segue pra chegar a este ponto é surpreendente. Robert se torna um famoso fotógrafo, muito mais conhecido pelos icônicos retratos e praticamente catalogando a cena sadomasoquista de Nova Iorque. Patti tem hoje 67 anos, ao menos 11 discos gravados, e além desta autobiografia, coletâneas de poesias do passado. Robert deixou seu legado, como queria, mas faleceu em consequência da AIDS em 1989 aos 42 anos de idade.
Auto retrato de Robert |
Numa tarde tomando café numa garrafa térmica e observando as pessoas na Washington Square, Patti e Robert começaram a ser observados por um casal de turistas. Exibicionista, Robert apertou a mão de Patti com carinho, e a turista falou ao marido "tire uma foto deles, acho que são artistas", no que o marido respondeu dando de ombros "ora, vamos logo. São só garotos".
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